domingo, 23 de outubro de 2011

De molho


Ainda menina aprendi com minha mãe que roupas encardidas devem ser deixadas de molho antes de darmos a elas a atenção do movimento dos dedos e do sabão. Ou da máquina de lavar. O descansar do tecido em um balde com água misturada ao detergente predileto é crucial para que o grosso da sujeira seja vencido pelo tempo. Nos casos extremos, quando a graxa é tamanha, deve-se usar água morna, que aos poucos vai ficando turva enquanto o pano se despede de algumas manchas e oleosidades. Mas o fato é que o molho é indispensável. Sempre um pré-requisito para a lavagem bem intencionada de peças imundas.
Ainda menina aprendi com meu pai que tudo tem seu tempo. E respeitá-lo é a arma dos determinados.  Há tempo de comer e tempo de brincar. Há tempo de estudar e de descansar.  Eclesiastes. Tudo que estica demais se torna pernicioso. E de menos também. Porque zelar pelo bom uso do tempo é manter o foco. Concentrar-se na existência de um objetivo por trás da ação. E não deixar que a intenção apodreça pela ausência de pulso. Que a vontade fique pelo caminho, ao sabor do vento.  Ou que a preguiça dê asas ao prolongar e encurtar demasiado do tempo.
Ainda menina aprendi que certas coisas somente são entendidas quando colocadas à prova da experiência.  Das cabeçadas. Das conexões que fazemos com tudo que está gravado em nossa CPU quando precisamos tomar uma atitude. Ou fazer uma escolha. Ou desistir. Daí que busco no meu Google uma resposta para os dissabores contemporâneos e ele me atende com a imagem de um balde repleto de peças sujas num cantinho da área de serviço e o trecho do livro da Bíblia que se debruça sobre o uso do tempo. Bingo!
A verdade é que meu manto anda encardido demais. Nada do esmero da lavagem feita com o molho. Apenas torneiradas de água para uma retirada rápida do que pode sair no susto, uma torcida e um banho de sol. E vamos lá vivendo que o tempo não para. Mas quando o pano torna-se tão escuro quanto a noite a vida vai ficando azul marinho também. E não dá mais para adiar o molho. Há que se pegar o balde, o detergente e a água morna. E encarar o pause. Aguardar a ação do tempo. Daí o desafio.
O molho é apenas o primeiro obstáculo. Ninguém quer estar de molho. Parar para repensar o vivido. Porque requer coragem (ou loucura, quem sabe?) de puxar a toalha da mesa com tudo em cima diante do olhar abismado do outro. E admitir que algo está errado. Dar início a faxina e deixar escorrer a sujeira que há anos já era da família. Gritar aos quatro ventos que o acúmulo de imundície incomoda demais, aperta o peito.  Sabendo que para isso há que abandonar a tribo, a companhia de outros sujinhos que nos davam a confortante sensação de unidade com o mundo.
O tempo é o derradeiro empecilho. Pode ser perigoso no caso do molho. Porque roupa que fica dias num balde com sabão cheira mal, e a sujeira parece concentrar-se ainda mais na trama. Tiro no pé. O molho só tem finalidade quando no tempo certo, medido na cor da água. Ou talvez com timmer.  Assim, depois de realizado, o pano deve ser lavado, esfregado e jogado à máquina para que toda a sujeira dê lugar ao novo. A veste de tantos outros molhos que virão.

4 comentários:

  1. Helga, PARABÉNS. É um prazer ler o seu blog, sou sua fã de carteirinha. BJS tia Elisa (Floripa)

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  2. Belo texto, Helguinha, com significados diversos e um lirismo contido. Há muito o que se ler nas entrelinhas.
    Bjs

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  3. Tia Elisa
    Obrigada! Fico feliz por dividir minhas palavras com você. Sinta-se sempre à vontade por aqui. Um beijo grande!

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  4. Paulo
    Obrigada! É verdade, me vejo sempre nas entrelinhas do texto... conversando com os que mergulham nesse reservado. Um beijo!

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