quinta-feira, 28 de julho de 2011

Sem pressa



A vida é tecida pelo fio da delicadeza. Foi o que escreveu a jornalista Eliane Brum no meu exemplar de A vida que ninguém vê, de sua autoria. O livro, publicado em 2006, ganhou a dedicatória há algumas semanas, durante o lançamento de outra obra da repórter, o romance: Uma duas.
Em férias na pacata cidade de Ibirá (SP) pude finalmente entender a frase por completo. Porque depois de tirar da manga meu velho livro e entregá-lo juntamente com o recém-lançado percebi que não conseguia identificar o que diziam as palavras que enfeitavam a primeira página. Muita grosseria voltar para tirar a dúvida. A fragilidade presente na fisionomia e fala de Eliane não fazia coro com sua letra vigorosa. Traços de quem sempre sujou os sapatos em apurações Brasil afora, correndo contra o tempo para eternizar detalhes –falados e silenciados, sem interrupção.
O recado inicial de repente se desembaralhou enquanto eu relia sem pressa o livro que me fez cair no canto da sereia da autora gaúcha. Porque antes mesmo de me debruçar sobre a obra saída do forno da escritora –sua primeira incursão nos campos da ficção, me bateu uma saudade de como fiquei entorpecida quando fui apresentada às palavras cheias de lirismo de Eliane. Uma prosa tão bela que se aproxima da poesia. Mesmo construída em terreno árido e pedregoso: a vida sofrida de pessoas quase invisíveis.
Sem relógio, exigências cotidianas e entregue a fartos goles das águas medicinais da estância hidromineral descobri o que me cochichava a autora. A vida é tecida pelo fio da delicadeza. E não é que fazia todo o sentido? A delicadeza estava no avesso da pressa. Que nos mecaniza e faz acreditar que até a água não tem gosto.
No livro –vencedor do Prêmio Jabuti de 2007, Eliane se esvazia de si mesma para dar espaço às histórias que vão surgindo segundo o tempo dos personagens. Porque como já disse certa feita, cada vez faz menos perguntas aos entrevistados. Respeita o ritmo singular das conversas como uma observadora livre de preconceitos e deadline. E o que acontece após esgotar-se de falas alheias é uma história à parte.
Porque é depois de tudo digerido, respeitando um tempo que não se mensura, e com palavras cuidadosamente escolhidas, que a autora nos mostra que os personagens que dá voz, tão esquecidos de si mesmos, dialogam com conflitos que carregamos no peito. Sua escrita descortina a história por trás da história. Tira da realidade de pessoas comuns os questionamentos e as angústias inerentes a todos nós. Mas invisíveis aos que não se deixam, lentamente, mergulhar no inesperado.
Daí que não somente os personagens são salvos pelo olhar respeitoso de Eliane. Nós também. Porque assim como Israel, considerado um rascunho malfeito de vida, atirado num canto da Vila de Kephas, em Novo Hamburgo, nós também ansiávamos inconscientemente ser salvos por um olhar. Que nos alertasse para a cegueira coletiva e congênita da urgência. A professora, estendeu a mão e a sala de aula para Israel entender que o mundo podia ser maior do que a vila construída por operários. Eliane nos convida a tentar deixar para lá o cacoete de reduzir tudo a uma leitura só.
Precipitados que somos em entender o que nem foi dito, julgar e dar significado ao que já o tem por si só, sucumbimos ao tempo. A pressa anula a capacidade de perceber a vida em seu ritmo natural. Repudia a paciência para aguardar o que ainda não tem nome e afaga a ansiedade que constrói roteiros para tudo e todos. E então as coisas realmente importantes vão ficando cada dia mais escondidas pela indelicadeza da pressa. Enquanto outras ganham espaço pela quantidade perceptível de adornos.
Parece utopia imaginar essa resistência em viver sob o mando dos ponteiros do relógio em outro lugar que não uma pequena cidade de águas curativas. Ou num período diferente do de descanso, em que a urgência é até contraditória. Ou então em levar em frente essa busca em respeitar a ordem dos acontecimentos no jornalismo que pratico –assombrado pela dinâmica dos resultados rápidos. E quem sabe até para a vida? Com os desafios dos relacionamentos, da maternidade e da fé?
A resposta a essa reflexão assemelha-se aos traços impiedosos de Eliane Brum. Só vai desembaralhar aos olhos dos que esqueceram de ter pressa.

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