sexta-feira, 20 de maio de 2011

Espelhos d'água


Matéria de capa da revista Veja São Paulo desta semana traz à baila -como faz de tempos em tempos, a vida e os caprichos de novos milionários que povoam a cidade. A emergente da vez é Val Marchiori, 36 anos, e pelo menos seis deles dedicados à busca da fama e aceitação entre as elites paulistanas. Apresentadora de um dos quadros do Programa Amaury Junior (que aborda os hábitos de consumo da classe AAA), a ricaça teve um dia de sua semana acompanhado por um repórter da publicação. 
As "preciosidades" destacadas na matéria, como sua opinião acerca das mulheres bonitas "que como empresas boas nunca quebram, apenas mudam de proprietário", ou ainda, a capacidade de consumir em um só dia $75 mil reais com brinco, vestidos e refeições caras, são café pequeno quando se observa algo não dito, pinçado nas entrelinhas. A moça tem dois filhos gêmeos que só aparecem em sua agenda quando dividem com ela a mesa do café da manhã. Depois que "são despachados" para a escola, como relata a matéria, somem sem deixar rastro em seu dia-a-dia de excentricidades. Seu maquiador, por exemplo -egresso do salão MG Hair de Marco Antônio de Biaggi, à disposição 24 horas por dia, tem mais horas de convívio com a madame do que seus próprios rebentos.
Lembro dos espelhos d'água -a melhor analogia que conheço das crianças. Aquele recurso arquitetônico que se utiliza de uma piscina rasa e cheia de água para refletir a luminosidade gerada pela "obra pincipal" que o circunda, num efeito decorativo de grande beleza. Os filhos são nada mais do que reflexos das belezas e fraquezas dos pais -"a obra principal". Espelham aquilo que aprendem nas entrelinhas e não no discurso politicamente correto que escutam como um mantra empoeirado.
Daí a urgência em tomar tento para essa realidade triste, mas não rara em nossos tempos. O descaso em relação às crianças -tratadas como acessórios contemporâneos. Comprados como casa, carro, vestidos. Com cuidados terceirizados e desejos silenciados. Adestrados para não atrapalhar a agenda já tumultuada dos genitores. Agora o tempo "de qualidade é o que conta". Qualidade esta que pode estar nos vinte minutos de um simples café da manhã. Em que até a boca está ocupada com alimento. Silêncio de qualidade.
Convívio amoroso, amparo e aceitação dos pais são os pedidos mais realizados ao Papai Noel. Ele mesmo me contou -será que por isso não teve filhos? Mesmo que, às vezes, sejam pinçados nas entrelinhas da cartinha. Mas poucos pais entendem o chamado de socorro. Enquanto as crianças vão refletindo a solidão dos adultos que as cercam. Até o dia em que eles, os "mais vividos" dão-se conta que os filhos transformaram-se em pequenos monstros e perguntam-se: onde foi que eu errei? Esquecendo-se de olhar no espelho.
Como acontece com os jovens Ema e Todd, personagens da montagem Pterodátilos, de Nicky Silver, em cartaz no Teatro Faap (SP), seu caráter deformado não é obra do acaso. Mas subproduto do abandono e individualismo dos pais. Sobre um palco móvel que se desfigura assim como a família do banqueiro ausente Artur e da alcoólatra e superficial Grace, os filhos são cópias com lente de aumento da ausência de sentimentos "da obra original". Quatro pessoas que vivem em mundos particulares, refletindo nada mais do que puderam receber.
A montagem, comemorativa dos 45 anos de carreira do ator Marco Nanini (à vontade na interpretação cuidadosa de Artur e Ema) é o protótipo do espelho d'água que os novos tempos sinalizam. Por isso, um soco no estômago -necessário. Porque nos apresenta o grande desafio. Podemos fazer das crianças espelhos d'água cheios de lodo e mau cheiro ou grandiosos como aquele que conduz ao Taj Mahal. Uma peça que deveria ser obrigatória na agenda de Val Marchiori.

3 comentários:

  1. Concordo com seu ponto de vista sobre a importância da convivência dos filhos com os pais. Corretíssimo. Mas neste caso, eles são "terceirizados" aos cuidados de escola e babás, e quem sabe, convivendo com pessoas mais perto da realidade, isso não faça bem a eles mais do que ser como essas pessoas movidas a $?

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  2. Bom texto, Helguinha. E concordo com o que disse Consuelo sobre a convivência com escola e babás. Imagine os filhos de pessoas como essa milionária convivendo com ela 24 horas? O fato é que cada vez mais os filhos são apenas parte de um modelo, que inclui ainda o sucesso profissional a qualquer custo e as relações sociais movidas a frivolidades. Pais e mães sem maturidade e sem paciência delegam a outros a função (importantíssima) de criar um filho. O resultado está aí: grupinhos homofóbicos, rachas nas avenidas e gravidez precoce.

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  3. É verdade Consuelo, os cuidados terceirizados aproximam algumas crianças da realidade e talvez até sejam a melhor alternativa para que tenham uma vida mais equilibrada, como no caso dos filhos de milionárias como Val Marchiori. O ideal seria que o propósito de ter um filho saísse desse modelo de vida artificial que o Paulo coloca muito bem -porque é isso mesmo que acontece. Os cuidados delegados serão sempre paliativos e a reflexão sobre o que realmente move a decisão de se ter um filho, adiada. As escolas e babás são alívios temporários para crianças que terão que encarar o vazio e indiferença dos pais por toda uma vida.

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