terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Males vorazes



Quando se leva uma boa chinelada da mãe pela primeira vez a bunda dói muito. Nessa hora a arte não vale a surra. E juramos que nunca mais vamos fazer bobagem. Até que o tempo leva o cor-de-rosa da pele machucada e a lembrança de um ardor que parecia insuportável.  E aí, claro, repetimos a estripulia. Com o tempo acostumamos com a arte e com a dor. E com o fato de que quanto mais repetimos o erro menos dói o castigo.

Adultos, seguimos na mesma. A chinela, agora repaginada, se chama consciência. Que nos dá palmadas quando fazemos cagada. A conta vem rápida –sofrimento via Sedex.  A culpa corrói devagarinho, alimentando a descrença em nós. E os pensamentos acusatórios não poupam detalhes e reprisam o acontecimento como um disco riscado. Mesmo agora, com 32 dentes, ainda nos encolhemos diante de alguns, mais cabeludos, decidindo por esquecê-los embaixo do tapete, torcendo os dedos para que fosse apenas ato falho.

Mas se dermos brecha também nos acostumamos com as bobagens adultas. E o que não era para acontecer nunca, vira um talvez às vezes, tudo bem de vez em quando, na mesma medida em que percebemos que a dor no peito já está miúda. A consciência quase silenciosa. Já nos permitimos aceitar o inaceitável. Sem choro, nem desculpas. Vamos abrindo espaço para uma maldade que vem de mansinho, tomando conta dos espaços vazios criados pela anestesia do sentir. Nos transformando em zumbis vestidos de gente.

Sabemos sobre matanças desmedidas, humilhações e estupros de povos marginalizados e esquecidos. Uma realidade assustadora. Brutalidade que consta nos jornais. Mas o que resta é silêncio. Revolta muda. Impossibilidade de ação concreta. O que podemos fazer, enfim? Vamos empurrando tudo para debaixo do tapete e deixando de se incomodar com o que não pode ser mudado. Não pensamos mais na selvageria em terras estranhas. Não sentimos mais a dor dos outros como nossa.

O caso é que os males vorazes sobrevoam o quintal de casa. Lançam sementes enquanto caminhamos com o mau hábito de infância de ignorar a chinela. Os valores se transformam e apenas balançamos a cabeça num consentimento preguiçoso.

Não há problema se as crianças estão jogando cada vez mais games violentos, em que os gráficos recriam com perfeição o mundo real. Com cenas que mostram corpos sendo dilacerados e sangue esguichando para todo lado. Não há mais porque criar enredos que justifiquem a matança, ninguém se preocupa mais com isso. E quando foi mesmo que isso fez alguma diferença?

Também não é questão de criar caso se lutas tomam cada vez mais espaço na mídia, incentivando as pessoas, já calejadas por rotinas sofridas, a se acostumar com a violência como alternativa ao tédio. Um vislumbre dos gladiadores de outrora. O entretenimento alimentado por fúria, sangue e pernas quebradas.

E quanto à violência sendo utilizada como forma de manifestação? Os quebra-quebras, os arrastões. O que dizer do extermínio de detentos realizado por facções dentro dos presídios com o conhecimento de órgãos públicos e a própria polícia? O extermínio das diferenças, dos homossexuais, como o jovem Kaique Augusto Batista dos Santos, com apenas 17 anos?

Então me lembro da realidade assustadora apresentada nos livros da série Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e a angústia que me causou sua primeira versão para o cinema. Um vislumbre (sim, exagerado) do caminho que estamos seguindo absolvendo a violência travestida de diversão.

No romance a personagem Katniss Everdeen, de 16 anos, nos descreve o horror em primeira pessoa. O caminho percorrido por uma sociedade que deixou seus valores éticos no jardim da infância. Ali, a América do Norte agora se chama Panem. É e a própria visão do Apocalipse.

12 distritos sobrevivem miseravelmente como se fossem escombros de cidades bombardeadas. Subjulgados pela metrópole descrita como Capital. Anualmente, dois jovens, entre doze e dezoito anos, são sorteados para servir como tributos para os Jogos Vorazes. Resposta da Capital à revolta de alguns distritos ocorrida tempos atrás, os jogos são uma batalha em que só um adolescente sobrevive. Luta sem precedentes. Carnificina televisionada.

Nos damos conta que uma minoria vive, à mercê de qualquer tipo de apreensão, completamente entretida com os jogos que segue em casa, via satélite. Pessoas que extravasam uma felicidade abestalhada, num vestuário exagerado, como se estivessem num eterno Carnaval. Tomadas por uma ausência de sentido de vida acachapante, aplacada unicamente pela sádica opressão ao outro. Hipnotizadas pelo consumo e pela comida. Numa terra sem lei que garanta o direito à vida.


São personagens de ficção. Mas espelham o pensar e agir de muitas pessoas por aí. Muito mais do que gostaríamos. Falo por você também. Gente que um dia, com certeza, também levou uma boa chinelada na bunda. Daquelas que só dói na hora.