Quando se leva uma boa chinelada da mãe pela primeira vez a bunda dói muito. Nessa hora a arte não vale a surra. E juramos que nunca mais vamos fazer bobagem. Até que o tempo leva o cor-de-rosa da pele machucada e a lembrança de um ardor que parecia insuportável. E aí, claro, repetimos a estripulia. Com o tempo acostumamos com a arte e com a dor. E com o fato de que quanto mais repetimos o erro menos dói o castigo.
Adultos,
seguimos na mesma. A chinela, agora repaginada, se chama consciência. Que nos
dá palmadas quando fazemos cagada. A conta vem rápida –sofrimento via Sedex.
A culpa corrói devagarinho, alimentando a descrença em nós. E os pensamentos
acusatórios não poupam detalhes e reprisam o acontecimento como um disco
riscado. Mesmo agora, com 32 dentes, ainda nos encolhemos diante de alguns,
mais cabeludos, decidindo por esquecê-los embaixo do tapete, torcendo os dedos
para que fosse apenas ato falho.
Mas
se dermos brecha também nos acostumamos com as bobagens adultas. E o que não
era para acontecer nunca, vira um talvez às vezes, tudo bem de vez em quando,
na mesma medida em que percebemos que a dor no peito já está miúda. A
consciência quase silenciosa. Já nos permitimos aceitar o inaceitável. Sem
choro, nem desculpas. Vamos abrindo espaço para uma maldade que vem de
mansinho, tomando conta dos espaços vazios criados pela anestesia do sentir. Nos
transformando em zumbis vestidos de gente.
Sabemos
sobre matanças desmedidas, humilhações e estupros de povos marginalizados e
esquecidos. Uma realidade assustadora. Brutalidade que consta nos jornais. Mas
o que resta é silêncio. Revolta muda. Impossibilidade de ação concreta. O que
podemos fazer, enfim? Vamos empurrando tudo para debaixo do tapete e deixando
de se incomodar com o que não pode ser mudado. Não pensamos mais na selvageria
em terras estranhas. Não sentimos mais a dor dos outros como nossa.
O
caso é que os males vorazes sobrevoam o quintal de casa. Lançam sementes enquanto
caminhamos com o mau hábito de infância de ignorar a chinela. Os valores se
transformam e apenas balançamos a cabeça num consentimento preguiçoso.
Não
há problema se as crianças estão jogando cada vez mais games violentos, em que
os gráficos recriam com perfeição o mundo real. Com cenas que mostram corpos sendo
dilacerados e sangue esguichando para todo lado. Não há mais porque criar
enredos que justifiquem a matança, ninguém se preocupa mais com isso. E quando
foi mesmo que isso fez alguma diferença?
Também não é questão de criar caso se lutas tomam cada vez mais espaço na mídia, incentivando as pessoas, já calejadas por rotinas sofridas, a se acostumar com a violência como alternativa ao tédio. Um vislumbre dos gladiadores de outrora. O entretenimento alimentado por fúria, sangue e pernas quebradas.
Também não é questão de criar caso se lutas tomam cada vez mais espaço na mídia, incentivando as pessoas, já calejadas por rotinas sofridas, a se acostumar com a violência como alternativa ao tédio. Um vislumbre dos gladiadores de outrora. O entretenimento alimentado por fúria, sangue e pernas quebradas.
E
quanto à violência sendo utilizada como forma de manifestação? Os
quebra-quebras, os arrastões. O que dizer do extermínio de detentos realizado
por facções dentro dos presídios com o conhecimento de órgãos públicos e a própria
polícia? O extermínio das diferenças, dos homossexuais, como o jovem Kaique Augusto
Batista dos Santos, com apenas 17 anos?
Então
me lembro da realidade assustadora apresentada nos livros da série Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e a
angústia que me causou sua primeira versão para o cinema. Um vislumbre (sim, exagerado)
do caminho que estamos seguindo absolvendo a violência travestida de diversão.
No
romance a personagem Katniss Everdeen, de 16 anos, nos descreve o horror em
primeira pessoa. O caminho percorrido por uma sociedade que deixou seus valores
éticos no jardim da infância. Ali, a América do Norte agora se chama Panem. É e
a própria visão do Apocalipse.
12
distritos sobrevivem miseravelmente como se fossem escombros de cidades
bombardeadas. Subjulgados pela metrópole descrita como Capital. Anualmente,
dois jovens, entre doze e dezoito anos, são sorteados para servir como tributos
para os Jogos Vorazes. Resposta da Capital à revolta de alguns distritos ocorrida
tempos atrás, os jogos são uma batalha em que só um adolescente sobrevive. Luta
sem precedentes. Carnificina televisionada.
Nos
damos conta que uma minoria vive, à mercê de qualquer tipo de apreensão,
completamente entretida com os jogos que segue em casa, via satélite. Pessoas
que extravasam uma felicidade abestalhada, num vestuário exagerado, como se
estivessem num eterno Carnaval. Tomadas por uma ausência de sentido de vida
acachapante, aplacada unicamente pela sádica opressão ao outro. Hipnotizadas
pelo consumo e pela comida. Numa terra sem lei que garanta o direito à vida.
São
personagens de ficção. Mas espelham o pensar e agir de muitas pessoas por aí.
Muito mais do que gostaríamos. Falo por você também. Gente que um dia, com
certeza, também levou uma boa chinelada na bunda. Daquelas que só dói na hora.