segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Catar feijão



Meu filho mais velho pediu ajuda numa pesquisa da escola. O foco era o escritor recifense João Cabral de Melo Neto (1920-1999), a obra, Educação pela pedra, publicada em 1965. Atenção voltada a um poema em especial: Catar feijão. Olhos grudados na tela do computador, imaginação solta ao vento.


Catar feijão se limita com escrever. Joga-se os grãos na água do alguidar e as palavras na folha de papel, e depois, joga-se fora o que boiar. Certo, toda palavra boiará no papel, água congelada, por chumbo seu verbo: pois para catar esse feijão, soprar nele e jogar fora o leve e oco, palha e eco. Ora, nesse catar feijão entra um risco: o de que entre os grãos pesados, entre um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente. Certo não, quando ao catar palavras: a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção, isca-a como o risco.


Dividimos nosso entendimento do sentido que as palavras criavam. E naturalmente havia muitos. Sim, o autor desenhava um paralelo entre o ato de escrever e a escolha do feijão a ser preparado.  Em ambos os casos, a ausência de qualidade era a vilã que comprometia tanto o prato quanto a obra. Feijão seco, velho e oco; texto chato, pesaroso e vago.


Mas ampliamos a interpretação com a brincadeira proposta: a de catar feijão. Assim como fazemos com o grão, dia-a-dia “catamos” elementos no alguidar da vida. Feijões novos nunca nos são negados, se renovam como rabo de lagartixa.


Exibida pela Rede Globo no programa Fantástico de ontem, a entrevista da atriz Drica de Moraes à repórter Renata Ceribelli sintetiza toda a beleza e profundidade contida no poema de João Cabral. "A vida melhora muito se você não morre. Você abre seu olho para o que importa, você tira metade da sua vida que não prestava”.


Ela sabe bem o que está dizendo. Esteve muito próxima do fim. Após diagnóstico de leucemia, temporada de quimioterapia e internação por 120 dias, em decorrência de um transplante de medula, Drica repensou suas escolhas. Catou os feijões sem o uso habitual dos sentidos, que fracos, não podiam cumprir seu papel.


Porque a mão que escolhe a semente se baseia no que vê e muitas vezes se engana com o feijão que permanece ao fundo e não bóia. Mais tarde percebe que é o mesmo que pode quebrar o dente.  


E como se estivesse de olhos fechados, Drica escolheu as sementes sem interferência do ego. Metade delas foi embora.


Podemos catar pessoas, aproximá-las ou aparta-las do nosso afeto. Ou então, catar experiências, reunindo as boas oportunidades e afastando o que consideramos supérfluo.


 Todo novo dia é uma folha em branco cheia de grãos a serem guardados ou soprados. Com a força distinta do adulto e da criança. Está aí a grandiosidade, além da escolha.

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